Sobre o GT trabalhista

6.14.2005

Os músicos e o Regime Militar de 1964-Amaudson Ximenes Veras Mendonça*

Os músicos e o Regime Militar de 1964
Amaudson Ximenes Veras Mendonça*

A contra-revolução, segundo o mestre Florestan Fernandes, ocorrida em abril de 1964 teve desdobramentos profundos na constituição da sociedade brasileira nos últimos anos, sendo desnecessário dizer que muitos políticos tiveram seus mandatos cassados, estudantes presos, bem como foi instalado um rigoroso regime de censura e exceção; uma simples serenata para a namorada representava um perigo naqueles tempos de chumbo.
E por falar em serenata, um dos segmentos atingidos em cheio pelo golpe de classe foi a da Cultura através de intervenção na Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) criada a partir da União dos Músicos do Brasil (UMB), cujo idealizador seria o maestro paraibano José de Lima Siqueira, no ano de 1957. Naquela época, a UMB funcionou como uma espécie de "CUT Musical" agregando sindicatos estaduais e bandas musicais. Vivenciávamos o surgimento da Bossa Nova, das chanchadas, do Teatro Brasileiro de Comédia, da poesia concreta, bem como a construção de Brasília, símbolo maior da modernidade.
Em 1958, Siqueira, que também era advogado, redigiu um anteprojeto de lei para a criação da Ordem dos Músicos do Brasil entregue ao presidente Juscelino Kubistchek no dia de seu aniversário. Entre os seus fundadores podemos citar: Radamés Gnatalli, Hermeto Pascoal, Francisco Mignome, Villa Lobos entre outros.
Na manhã do dia 22 de dezembro de 1960, nos jardins do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro - ao som da folclórica canção Peixe Vivo, sob a regência do maestro Eleazar de Carvalho - Juscelino sancionaria a lei 3.857/60 responsável pela criação da OMB. O ato simbólico seria uma forma de fazer com que o presidente "acordasse" para a problemática da regulamentação da profissão de músico no país.
Segundo o professor-maestro Orlando Leite, no ano de 1962, Siqueira viria pessoalmente à Fortaleza para a criação do Conselho Regional do Estado do Ceará, cuja primeira sede funcionou na Sociedade Musical Henrique Jorge, na rua Sólon Pinheiro em frente o Parque das Crianças, no Centro de Fortaleza. De acordo com o veterano músico Otávio Santiago, o seu primeiro presidente foi o cantor José Jatahi, autor de inúmeras composições, bem como do hino do Ceará Sporting Clube. Entre os fundadores da OMB no estado estavam Antonio Gondin, Edgar Nunes, Nadir Parente, Branca Rangel, Esther Salgado entre outros.
No início do ano de 1964, o país vivia dias de incertezas com o governo populista de João Goulart navegando por um mar permeado em dificuldades econômico-financeiras. A desaceleração do crescimento econômico, a aceleração do ritmo inflacionário, o fracasso das chamadas reformas (agrária, política, cambial) de base pretendidas por ele, como também a sua aproximação a setores democráticos e populares fazia com que a classe dominante ligada ao capital estrangeiro e ao grande latifúndio desconfiasse da implantação do regime comunista no país em questão de poucos dias.
Em 1º de abril de 1964 alguns militares, com apoio de políticos, empresários e segmentos da classe média, temerosos com o clima de instabilidade, de medo do avanço comunista tomariam o poder através de um golpe de Estado. O novo regime político foi redefinido no sentido de restringir a participação popular, impedindo quaisquer reivindicações ou movimentos de oposição.
Naquele período, o Estado brasileiro preocupou-se em criar uma rede de comunicação interligando todo o país e ao mesmo tempo expandindo a indústria cultural. O intuito era alcançar uma uniformidade nas informações que circulavam no território, assim como padronizar a cultura e seu consumo diante das diversidades regionais.
Com a dissolução de quase todas as entidades democráticas da sociedade civil e político-partidárias restava no país somente a "militância cultural" como "militância política". Entre os anos de 1964 e 1968, os movimentos políticos e culturais utilizavam-se de metáforas para transmitirem suas mensagens sem serem interpelados pela repressão político-ideológica do golpe de classe. .
Acusado de pertencer ao Partido Comunista, José de Lima Siqueira seria deposto da direção da OMB e em seu lugar foi nomeado pelo regime Wilson Sandolli, que em carta distribuída aos jornais da época, vai definir bem o seu papel: "Vigiar e Punir os inimigos da Segurança Nacional". O mesmo processo vira a acontecer em nosso estado. Segundo o veterano músico Otávio Santiago, José Jatahi (presidente do Conselho Regional dos Músicos do Ceará) em ato público na Praça José de Alencar, fez um discurso inflamado contra o novo regime, conclamando a categoria e os trabalhadores a se insurgirem contra o Golpe de Estado. O ato teria como conseqüência a sua prisão e deposição do cargo.
A partir daquele momento, a OMB criada para o fortalecimento desse segmento social, também mudaria a sua finalidade, passando a exercer poder de polícia se constituindo como um dos sustentáculos da nova política cultural implementada pelo regime militar.
No final da década de 1970 e início de 1980 surgiriam os primeiros sinais dos movimentos pela anistia lampejos da abertura democrática. Entretanto, a Ordem ainda mantém sua estrutura, sua forma de atuação dentro da perspectiva cultural do regime autoritário. Um desses exemplos é a manutenção do seu presidente-interventor Wilson Sandoli, que segundo matéria publicada no jornal Estado de São Paulo (10/4/2001), permanece à frente daquela instituição desde 1964, ocupando ainda, o cargo de presidente do Conselho do Estado de São Paulo, bem como a presidência do Sindicato dos Músicos daquele estado. Segundo a matéria, Sandoli foi reeleito em abril de 2001 até 2005 em eleição bastante controversa.
Diante do exposto, percebe-se o quanto o golpe militar de 1964 e a intervenção na OMB contribuiram substancialmente para a desorganização e desinformação da categoria sobre o papel a ser desempenhado pela OMB. Tal fato levou a instituição a um estado de degradação e sucateamento. As sucessivas gestões de Sandoli representam esse conjunto de práticas e saberes sociais. A visão arrogante do dirigente, herança do regime autoritário, tem influenciado outros Conselhos do país, levando-os a processos de desintegração e desarticulação política da categoria. A sua gestão constitui-se num exemplo singular, e talvez paradigmático para uma entidade de classe, uma vez que se passaram quarenta anos. Nesse período, a sociedade brasileira passou por profundas transformações em todos os seus segmentos, tendo inclusive sido promulgada uma nova Constituição (1988), responsável pelas novas formas de disciplinarização do Estado na sociedade, em particular nos segmentos culturais brasileiros.
Sem quase nenhuma participação da categoria nas decisões dos seus respectivos Conselhos, tem sido comum a influência cada vez maior de pessoas alheias à música nos aludidos órgãos, ou seja, são grupos preocupados apenas em "levar vantagem", em garantir o status junto a outros segmentos da sociedade, contribuindo para que esse processo de degradação e desvio de finalidade da instituição se acelere; Sem falarmos do mito criado em torno da "Lei Federal", arma poderosa utilizada por fiscais e dirigentes da instituição contra os músicos, proprietários de estabelecimentos musicais e diretores de centros culturais no sentido de obterem a adesão dos mesmos. Tal argumento leva a grande maioria da categoria a acreditar na idéia de neutralidade das normas fazendo com que a OMB permaneça intocável, não admitindo-se sequer qualquer reformulação em sua estrutura legal, ou melhor dizendo, em seu Estatuto. Devido ao diálogo unilateral dos seus dirigentes uma soma considerável dos músicos brasileiros tem recorrido à Justiça obtendo vitórias importantes. Desde o ano de 2000, a OMB tem amargado sucessivas derrotas. A crise de legimitidade da instituição enquanto entidade que defende e valoriza os músicos é notória. Há muito tempo que a mesma perdeu essa finalidade, que se afastou dos interesses que embasaram a sua fundação. Sejamos vigilantes.