Sobre o GT trabalhista

4.17.2007

Músicos em ordem unida - 02/04/07

Clóvis Marques
Músicos em ordem unida
02/04/2007

Os músicos paulistas obtiveram uma vitória com a lei, promulgada a 31 de janeiro pelo governo de São Paulo, que os dispensa de apresentar carteira de filiação à famigerada Ordem dos Músicos do Brasil para exercer a profissão no estado. Resta esperar que não seja, mais uma vez, uma vitória apenas simbólica.

Andei matutando esses dias sobre a inserção dos músicos na cidade. No dia 27, completou um ano o fragoroso episódio da ‘expulsão’ do músico Eduardo Camenietzki da OMB, na crista de um justificado movimento de insatisfação dos profissionais da música contra essa instituição, dominada há décadas por indivíduos que, em vez de representar a categoria em suas necessidades e aspirações, mais parecem vampirizá-la.

Mas o próprio fato de a direção da OMB estar no ‘poder’ desde a década de 1960, quando seu atual dirigente foi nomeado ‘interventor’ pela ditadura militar, é de fazer o queixo cair. Dá o que pensar sobre a capacidade ou o desejo de mobilização dos músicos e seu poder de tomar nas mãos as rédeas do próprio destino.

À MARGEM DA POLIS? - O oboísta Luiz Carlos Justi considera, por exemplo, que os músicos da área clássica, menos atingidos que os populares pelos desmandos, arbitrariedades e abusos da OMB, deixam a coisa rolar e preferem pagar a anuidade para não se aborrecer. Muitas vezes o músico clássico, tendo prestado concurso para uma orquestra sinfônica, por exemplo, tem situação mais estável que o popular, que trabalha em eventos e apresentações esporádicas e está sujeito à cobrança da ‘carteirinha’ a cada vez.

O maestro Júlio Medaglia tem uma opinião sucinta sobre a espantosa relação músicos/OMB: “É a absoluta inconsciência da classe musical brasileira. O músico em geral não tem raciocínio ideológico, essa preocupação com questões políticas e profissionais. Imagine se os atores aceitariam um interventor durante mais de quarenta anos? E no entanto o músico é o maior profissional do Brasil, dá de dez a zero nos atores de teatro, não há um ator que tenha estudado dez a quinze anos e até mais para exercer a profissão.”

É do mesmo Medaglia, no entanto, uma tese que de certa forma explica ‘malgré elle’ uma espécie de estatuto de a-cidadania invocado pelos músicos, e que pode estar na origem dos problemas da classe musical – particularmente dos músicos clássicos – com as dificuldades, os deveres e direitos (e as barbaridades) da vida na polis.

Medaglia defende a tese de que, se os médicos, engenheiros e advogados precisam de uma ordem profissional para intervenção em casos de atos questionáveis ou de conseqüências graves para terceiros, quando cometidos por seus filiados, o mesmo não se dá com os músicos.

“Uma Ordem dos Músicos não tem sentido”, diz ele. “É o mesmo que criar uma Ordem dos Humoristas. Como se alguém pedisse ao Millôr Fernandes um certificado para autorizá-lo a escrever. É de um ridículo absolutamente atroz. A atividade cultural tem seu próprio código. Se o músico é bom, será contratado; se desafinar, não o será mais.”

Se existe aí um fundo de verdade, e particularmente um argumento considerável do ponto de vista da luta tática (essa mesma que os músicos só de uns anos para cá resolveram empreender), caberia meditar também no ethos de retirada e ensimesmamento que transparece dessa atitude: o músico estaria em outras esferas? Não deixa de ser eloqüente que vários dos músicos com os quais conversei (tentando entender também suas queixas em relação ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição/Ecad, que cuida dos direitos autorais) se dissessem desencantados e cansados de dar murro em ponta de faca e arranjar apenas inimigos, sem conseguir resolver ou encaminhar as questões concretas.

DESCONTENTAMENTO E MOBILIZAÇÃO - Não é, de qualquer maneira, a atitude de muitos deles. O próprio Medaglia, como eu insistisse na possível utilidade de um organismo funcionando a contento, reconhece: “Se eu fosse presidente da Ordem, teria muita coisa a fazer: questões de direitos autorais, que continuam sendo uma tristeza; lutar pela volta do ensino musical nas escolas, pois permite que haja mais circulação de idéias de alto nível cultural na população, para criar um publico de música clássica e não ficar à disposição dessa horrível indústria cultural eletrônica; regulamentar os direitos dos intérpretes...”

Luiz Carlos Justi, por sua vez, discorda dos que pretendem a pura e simples extinção da Ordem, que em sua opinião teria, entre outras tarefas, a de fiscalizar questões éticas no exercício da profissão.

Para quem assiste de fora, o sinal mais claro de mobilização está na internet, que regurgita de documentos, debates e informações em torno do movimento dos músicos que há uma meia dúzia de anos se insurgem contra o estado de coisas. Petições, mandados de segurança, liminares, projetos de lei – além de denúncias de abuso de poder, desvio de recursos, prevaricação...

Cito um trecho de ampla reportagem publicada em outubro de 2006 pela ‘Carta Capital’: “Nos últimos dois anos, o órgão vem sofrendo pressão de um número considerável de músicos, uns pedindo sua extinção, outros uma reformulação profunda. (...) ‘Defendo a OMB como instituição, mas há muito tempo suas práticas são questionáveis", avalia Marcus Vinícius de Andrade, presidente da Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (Amar-Sombras) e diretor da gravadora CPC-Umes. ‘A atual administração é prepotente, transformou a concessão de carteirinhas em um grande negócio e não está zelando pela qualidade artística.’”

Na frente clássica, o contrabaixista, professor (da USP) e escritor Henrique Autran Dourado – autor de um tratado fundamental, “O Arco dos instrumentos de cordas” (Edicon, 1998) e de uma deliciosa “Pequena estória da música” em ensaios (Irmãos Vitale, 1999) – pode ser considerado um militante. Foi ele quem me chamou a atenção para a nova lei paulista, que se resume neste artigo cristalino: “Ficam os músicos, no estado de São Paulo, dispensados da apresentação da carteira da Ordem dos Músicos do Brasil na participação de shows e afins.”

A decisão foi contestada pela direção da OMB na justiça federal, que se eximiu de intervir, por se tratar de decisão da esfera estadual. Mas ficam no ar, até onde pude entender, dúvidas quanto à eficácia da medida: A lei funcionará efetivamente no sentido de impedir a OMB de obrigar os músicos a apresentar carteira (ela não a impediria, por exemplo, de cobrar judicialmente o pagamento da anuidade)? Se o Supremo Tribunal Federal não quis intervir, significa que o governo do estado de São Paulo pode efetivamente interferir na ação de uma autarquia federal, como a OMB?

É de qualquer maneira um passo de energia de afirmação, frente a uma situação de abuso. Como ele, outros têm sido dados. ‘Quosque tandem, Catilina?...”